Por que a saúde no Brasil deveria se reorganizar por processos (e por que os gestores de saúde deveriam compreender e adotar a gestão por processos)?

Por que a saúde no Brasil deveria se reorganizar por processos (e por que os gestores de saúde deveriam compreender e adotar a gestão por processos)?

Este texto apresenta uma reflexão pessoal com base em minha vivência e atuação no sistema de saúde brasileiro. Desde 2004 venho trabalhando e aprendendo bastante sobre sistemas de saúde e, embora seja inegável que o Sistema Único de Saúde e o Sistema de Saúde Suplementar tenham conquistado avanços, existem enormes desafios que precisam ser enfrentados. O grande problema é que as soluções que vem sendo apresentadas não são mais suficientes para superar os problemas que ainda existem. Vou listar alguns dos que considero os maiores desafios e para cada um deles tentarem conjugar aspectos sobre outro campo de conhecimento e prática no qual venho me especializando: a gestão por processos.

Antes, permitam-me conceituar a gestão por processos conforme uma de suas principais referências: o CBOK. O CBOK é um corpo de conhecimento, não prescritivo, que busca oferecer alternativas ao modo tradicional de fazer gestão nas empresas. Nesta nova perspectiva, o objetivo é gerenciar a organização através de seus processos (não mais com foco em áreas). Estes processos devem ser identificados, conhecidos e dominados ponta a ponta e precisam ser otimizados com o foco do cliente, buscando aumentar a capacidade da organização de entregar valor.

Ao gerenciar processos as organizações devem buscar sempre viabilizar a melhor utilização de seus recursos. Lembrando que as organizações são repletas de processos. Sem processos, elas não produziriam valor. Um processo é basicamente um conjunto de atividades da organização que, após receberem um determinado insumo transformam este insumo agregando valor e gerando um novo produto ou serviço. Em algumas metodologias incluídas em uma boa abordagem de gestão por processos como o lean e o lean six sigma podem ser percebidas preocupações com a redução dos desperdícios e o aumento da assertividade (ou redução das falhas). Outras, como o design thinking, trabalham com o objetivo de rever os desenhos e abordagens trabalhando com empatia e se colocando no lugar do cliente.

Feita esta conceituação, segue uma lista do que considero os principais problemas do nosso sistema de saúde no Brasil (público e privado em doses variáveis):

  1. Os clientes estão insatisfeitos e sofrem as consequências da insatisfação do conjunto de atores (governo, provedores, prestadores, médicos);
  2. Existem muitos desperdícios e daí, por mais que faltem recursos, não há como negar que os que existem estão sendo muito mal utilizados;
  3. Existem muitas falhas e estas precisam ser vistas e resolvidas, principalmente com olhar obsessivo sobre a redução da variabilidade na prática clinica, mediante o uso de protocolos, realização de treinamentos e muita transparência;
  4. O sistema é absolutamente fragmentado. Começa na relação entre o público e o privado que são vistos como dois sistemas. Passa pela fragmentação do cuidado. E culmina no absurdo de imputar ao cliente a responsabilidade de encontrar o seu percurso assistencial;
  5. Há pouca ou nenhuma discussão sobre responsabilidade. Esta discussão deveria incluir os profissionais de saúde e os clientes.

Como a gestão por processos pode ajudar nestas questões? Respondo item a item:

  1. A proposta da abordagem da gestão por processos é trabalhar o foco do cliente. Não se trata do foco no cliente, uma abordagem de dentro para fora, mas do foco DO cliente. Conceitos como os praticados no lean (produção puxada, ou seja, captar a real necessidade do cliente) precisam ser trabalhados. Isso fará com que o conjunto de atores do sistema de saúde venha a agir com empatia em prol do cliente. É sempre importante esclarecer que por se tratar de uma área específica, a necessidade percebida pelo cliente não é sempre a real necessidade. Não aprofundaremos neste assunto neste texto, mas discutiremos em outra ocasião.
  2. O lean trabalha as sete causas de desperdício em organizações em geral. E nós, de maneira geral, somos pouco críticos ao desperdício. Procure conhecer o Aravind, um hospital da India que se especializou em cirurgia oftalmológica. Ou o Shouldice Hospital. São instituições que adotam processos enxutos, repetição, padrão e eficiência em busca de melhores resultados. É possível mudar nossa lógica permissiva com os desperdícios em saúde. Afinal, o desperdício não é bom para ninguém. Em um estudo de 2008 feito pelo Banco Mundial, concluiu-se que os hospitais no Brasil desperdiçavam 10 bilhões por ano com internações evitáveis. Reflita: se sua saúde pode ser melhor cuidada em uma instituição que não oferece riscos de infecção, por que você gostaria de ir para lá? Enquanto isso, outras pessoas podem não ter acesso a algo que precisam. Fala-se em falta de leitos, mas será que este é mesmo o problema?
  3. Sabe por que você não houve notícia da queda de um avião por dia? Por que a aviação já avançou para um padrão mais próximo do 6 sigma. Infelizmente, a saúde ainda é cheia de falhas. Muito se fala sobre o fato de ter um imenso envolvimento humano nos processos da saúde como se isso fosse justificativa para o volume de falhas que temos. Caso queira aprofundar neste assunto, sugiro ler a publicação “Erros acontecem”, desenvolvida por pesquisadores da UFMG e publicada no site do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar.
  4. Gestão por processos envolve mudar esta abordagem de “caixinhas” que estamos acostumados. E é preciso fazer isso de forma estratégica. O baixo nível de comunicação entre unidades de saúde, a falta de organização da saúde em geral, desde os seus macroprocessos, faz com que seja URGENTE avançar na implantação das Redes de Atenção, que nada mais são do que uma nova forma de organizar os serviços de saúde em processos, considerando desde a abordagem preventiva e de promoção a saúde até a intervenção e reabilitação dos pacientes.
  5. Por fim, e não menos importante, não há que se falar em gestão por processos sem pensar o responsável por cada processo. Nós estamos acostumados a responder por nós mesmos, por áreas, mas não por processos. Enquanto não discutirmos responsabilidade transversal inequívoca para cada processo, continuaremos com a lógica de “cada um na sua” e de o “problema não é meu”. Um bom exemplo de responsabilidade é o papel da atenção primária no funcionamento das linhas de cuidado. Mesmo que um cidadão, beneficiário, cliente ou paciente (no final, estamos falando de uma só pessoa) estiver em um hospital, é preciso alguém que o acompanhe de forma longitudinal, que seja acessível e que possa apoiar e orientar esta pessoa depois da alta hospitalar. Outro bom exemplo é o papel da pessoa no autocuidado apoiado. Não adianta um médico determinar o autocuidado do paciente se ele (o próprio paciente) não compreender sua responsabilidade e cuidar de sua saúde.

Claro que cada um destes itens que enumerei, possibilitam uma série de abordagens mais profundas com exemplos bem reais. E é isso que pretendo fazer nos próximos artigos.

Autor: FRANCISCO TAVARES JÚNIOR – Especialista em Planejamento Estratégico e em Gestão por Processos

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